Blog do Ediney

Descobri tarde demais…

Em 2011 ainda trabalhava no grupo RBS, o mesmo grupo de comunicação que um dos primeiros jornalistas que conheci trabalhava, chamava-se Norberto Silva no Paraná, era Norberto Well em Santa Catarina. E eis que hoje, descubro, tarde demais, a sua morte.

Puxa vida, fiquei bastante chateado sabendo da morte do jornalista Norberto. Era um grande amigo de meu pai e um cara sensacional.

Lamentei muito mesmo! Os primeiros livros da área quem me indicou a leitura, sempre certeira, foi ele. A primeira ligação de parabéns (fora da família, claro) pela primeira edição impressa do Jornal do Povo Paraná foi dele.

Grande sujeito, deixou com certeza sua marca no jornalismo paranaense e catarinense.

Abaixo, as duas últimas crônicas escritas por ele… recomendo muito a leitura!

A VOZ DE MUITAS ÁGUAS (publicada no Anexo em 13 de junho de 2011)

A escravidão deixou o branco mais marcado que o negro.
O cativeiro emergiu com o orgulho mais ferido que o filho do cativo.
Este saiu com a altivez incólume da servidão; pois sobreviveu à mais cruel tortura, que somente um animal como o homem concebe perpetrar contra seu semelhante.
Mas o pavor do branco agora é ser confundido com a senzala.
Enfrenta qualquer negociação para servir à elite, para parecer elite, principalmente politicamente.
Os rotos imbecis, bêbados dos campos de golfe, das camisas engomadas de vômitos de suas avarezas, já lustraram os coturnos militares que se curvam aos milicos norte-americanos. Agora temem a periferia ou qualquer manifestação dela. Inclusive quando ela come; se assustam.
Uma mão direita a criar leis para manter seus privilégios.
Pobres diabos grotescos, mal leem um jornal por dia e, quando leem, escolhem um diretamente parcial, por temer ser desmascarados e então se julgam intelectuais;
Falsos aristocratas, burricos mal-humorados, ataviados de inteligentes. Que na primeira oportunidade esticam as cercas nos terrenos do povo para depois gritar pelo direito à propriedade.
Sentem-se seguros se ajuntarem casa a casa; achegarem herdade a herdade, até que não haja mais lugar para ficar sós como moradores da Terra.
Vestem uma farda num pobre ordinário e dão-lhe um mísero salário para que ele defenda até a morte o domínio furtado, matando o próprio irmão para preservar direitos que não lhes pertencem, e os consola com uma medalha e uma notinha no teu jornal.
E então lhe chama “Cidadão”.
Depois alastra o ódio; dissemina a mentira por todas as vias que lhes chegam às mãos e convence a classe média de que terá um lugar na casa-grande, se lhe acariciar os colhões.
Predadores sociais, estranguladores, quando falam de flores, são flores carnívoras, trepadeiras que se alimentam de sangue.
Enquanto os jovens gemiam pelos porões, pendurados a ferros de torturas, vocês brindavam em cristais suas negociatas e o crescimento do desemprego que lhes daria mais mão de obra barata.
Agora que a Bastilha começa a tremer, que seus pescoços perfumados sentem a lâmina da guilhotina, vocês buscam na ignorante classe média a volta de seus asseclas ao poder, por meio de partidos que pertenceriam aos fariseus, uma vez que se vocês vivessem no tempo, Cristo tê-lo-ia crucificado, já na primeira vez que ele multiplicou os pães.
Este país ainda não saiu da “Casa-grande e Senzala”, e o branco teme ser confundido com aqueles que vivem no pátio, abaixo de apito.
Precisa parecer casa-grande nem que para isso sacrifique o futuro de seu neto.
O pavor em ser confundidos com a senzala é o tronco que a história lhes reservou e do qual não poderá fugir.
E mais uma vez serão derrotados pelo povo.
Uma música que lembra a “Marselhesa” vem sendo entoada na esquina, como a voz de muitas águas.
E quem sabe libertará também.
Aqueles que, ao escravizar, tornaram-se cativos de seu próprio medo. Pois vivem sob o jugo do terror de serem assaltados, ou o temor de serem confundidos com o terreiro.
E preferem a segurança da escravidão, no quarto do pânico, ao risco da liberdade.

O TECELÃO DE SONHOS (publicada no Anexo em 6 de junho de 2011)

Agora eu sou tecelão, mas no tempo em que a carne era preservada no mel, ou na banha de porco, em latas de 18 litros, eu era um pescador de sonhos. O rio, o barrento, rio Hercílio, que atravessava Ibirama, girava o circuito de nossas vidas e nossa existência em torno dele.
Nossa canoas eram feitas de tábuas de cedro, ao contrário das dos indígenas, confeccionadas com uma tora só, mas eram com elas que corríamos o rio a tarrafear com meu pai, para pegar jundiá, no poço do salto, durante o inverno, e cascudo das inúmeras pedras do rio, nas noites de lua cheia, no verão.
O rio e a agricultura formavam nossas vidas de coletores, uma vez que até as vassouras fazíamos de piaçaba, ou de palha de milho, e os cestames de bambus eram um lugar comum em nossos terreiros. Assim se entrelaçavam a minha vida e a do meu pai. Dos índios comprávamos cocares, bodoques e flechas para decorações, somente. Afinal índio, por índio, meu avô era mestiço, e eu, hoje me olho no espelho deste hospital, onde me restabeleço de um transplante de rim, e vejo os traços guarani em minha pele, meus olhos e meu jeito de quem já andou aonde muita gente não sabe se vai.
Meu pai um dia deixou a canoa fora d’água, porém cheia, para a madeira não secar e foi pedir serviço na Celesc. Serviço? Tem, respondeu o encarregado e lhe deu uma foice para roçar embaixo das linhas de alta tensão. Foram 26 anos de trabalho na “Se lasque”, e 18 fatias de pão no café das manhãs todos os dias para suportar o puxado. Ainda havia tempo para plantar, colher e pescar.
Eu cresci pescando ilusões pelo rio Hercílio, e captando sonhos na Escola Básica Elizeu Guilherme. Na adolescência fui trabalhar “fichado” em uma laminadora, no meio das toras que vinham do Mato Grosso. Eu, filho de índio Xocleng e Tupi Guarani, casado com filha de alemães, resultando em quatro filhos genuinamente catarinenses, do Baixo Vale do Itajaí. Meu nome é Luiz César da Silva, tenho muitos xarás, mas uma só história. A minha e a do rio Hercílio. A de um amigo que sempre esteve ali a refletir a lua, nas noites de tarrafas, a dourar o sol, em seus saltos, nas tardes de verão.
As águas do rio Hercílio levaram todas as minhas dores, todas as minhas mágoas, e hoje estou mais perto do mar, em Gaspar, a pescar no córrego de irrigação de arroz, aos finais de semana. Troquei o espelho do rio por este reflexo de vidro do hospital e meu nome é Luiz César da Silva, tenho muitos xarás e uma história somente: a história de como se fez um povo genuinamente catarinense que juntos com nações distantes teceram o sonho barriga verde. Por isso eu digo – Eu vim; tu vieste; ele veio. – É assim que se fala português. Catarinense põe orgulho no teu sotaque.

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